Mudança climática: mercado acredita na Arca de Noé(por Felipe Sampaio)
O mercado encontra-se novamente em um dilema de sobrevivência. Porém, desta vez, o inimigo não é o Sultão Saladino, mas o próprio Planeta
atualizado
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Na COP27 estavam presentes os diversos setores produtivos e financeiros do mercado, cuja dificuldade em aprovar providências urgentes expôs o que pode ser uma ingenuidade em relação à emergência climática. Afinal, ninguém em sã consciência imaginaria ser possível lucrar com o apocalipse.
A aprovação do fundo de compensação de perdas e danos, ainda que aos 45 minutos do segundo tempo, merece festejo, mas faltou bater o martelo em três detalhes: quanto dinheiro haverá, quem paga e quem recebe.
O fundo é portador do mesmo ‘pecado original’ de propostas anteriores, destinadas a consertar tropeços das economias modernas, como é o caso do aquecimento global. Ou seja, sempre que se pergunta quem banca as consequências, magoa-se a vaca sagrada do capitalismo (o lucro) e desperta-se um bicho-papão do mercado financeiro (a incerteza).
Lucro e risco são cláusulas pétreas da economia liberal. Maximizar o primeiro e minimizar o outro é o que justifica o investimento privado desde a última Cruzada, quando os reis, os papas e os mercadores (sob pena de extinção) resolveram fazer essa conta.
O mercado encontra-se novamente em um dilema de sobrevivência. Porém, desta vez, o inimigo não é o Sultão Saladino, mas o próprio Planeta (se correr o bicho pega, se ficar o bicho come).
O anfitrião da Cúpula do Clima elevou o patamar do desafio: “Estamos perdendo a luta das nossas vidas”. Ao dizer “nossas”, António Guterres deu a má notícia de que, no próximo dilúvio, não haverá Arca de Noé para salvar o life style dos homens brancos ricos.
Nesse cenário, os desastres naturais crescentes, somados à pandemia de COVID e à guerra na Ucrânia, mostram que a escala de tempo e intensidade dos fenômenos climáticos não está nem aí para o índice Dow Jones.
Enquanto algoritmos financeiros calculam como lucrar com finanças verdes, clean business, social bonds, greenwashing e ESG, um investidor distraído pode acordar com Wall Street afogada pela Baía de Manhattan ou cozinhada a 60°C.
O paradigma de negócios mudou. O pay back e o break-even point serão deslocados pelos custos inadiáveis da mudança climática. Os subsídios públicos e os créditos de carbono não bastarão para salvar as equações atuariais. Com sorte, servirão para aliviar a transição para um novo normal imprevisível. A nova unidade de medida para custos de oportunidade poderá ser o número de vidas perdidas.
Uma dica para bom uso imediato do dinheiro, seja público ou privado, seria justamente corrigir as simulações de cenários (para alimentos, água, energia, infraestrutura e geopolítica), antevendo um aumento médio de temperatura de 2,5°C. O resultado pode proporcionar o choque de realidade que falta.
Felipe Sampaio: foi assessor especial dos ministros da Defesa (2016-2018) e da Segurança Pública (2019); ex-secretário executivo de Segurança Urbana do Recife (2019-2020); cofundador do Centro Soberania e Clima.