O Eternauta e a Ficha Limpa
Milei sofreu uma derrota simbólica e outra política
atualizado
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Javier Milei teve duas derrotas na semana ada. Primeiro, o sucesso mundial de “O Eternauta” desafia sua política de apagamento da memória da ditadura – o autor da HQ que deu origem à série foi assassinado pelos militares. Segundo, a Casa Rosada não conseguiu aprovar uma alteração na Lei da Ficha Limpa que impediria a ex-presidenta Cristina Kirchner de concorrer nas próximas eleições legislativas.
O Eternauta colocou-se entre as dez séries mais vistas na Netflix em 87 países na semana ada. A receita do sucesso é uma ficção científica baseada em uma HQ cultuada e escrita na década de 1950, imagens poderosas, a qualidade argentina de roteiro e Ricardo Darín, o Messi do cinema local.
Sinopse: cidadãos de Buenos Aires tentam sobreviver a uma nevasca mortal e uma invasão alienígena. Entre eles está Juan Salvo, ex-combatente das Malvinas. Escrita por Héctor Germán Oesterheld, com os traços de Francisco Solano López, foi publicada entre 1957 e 1959 na revista Hora Cero. Curiosidade, acabei de terminar a leitura da HQ e a narrativa é totalmente diferente da série.
Integrante do grupo guerrilheiro Montoneros, Oesterheld foi sequestrado pela ditadura em 1977. Suas quatro filhas também foram presas, duas delas grávidas. Todos desapareceram. Somente sua esposa e dois netos sobreviveram e remoeram a ausência de respostas até o fim da vida. Soma-se o caráter crítico das obras de Oesterheld – escreveu uma biografia de Che Guevara e um livro sobre o imperialismo na América Latina -, e foi instantânea a associação do Eternauta como uma mensagem de resistência à opressão.
Organizações como H.I.J.O.S. (Filhos e Filhas pela Identidade e Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio) e as Avós de Maio têm usado a série para intensificar suas campanhas de buscas de desaparecidos. Um post no X escreveu: “Você está assistindo O Eternauta? Se sim, e você nasceu em novembro de 1976 ou entre novembro de 1977 e janeiro de 1978 e tem dúvidas sobre sua identidade ou a de alguém nascido nessas datas, entre em contato com a Avó”.
É um revés para Milei, que desde a campanha nega os 30 mil mortos durante a ditadura e relativiza sua violência, defende a tese dos dois demônios (não só os militares, mas a esquerda também cometeu crimes) e cortou drasticamente o orçamento dos órgãos ligados à memória do período.
A outra derrota foi o Projeto de Lei que alterava a Lei da Ficha Limpa, que caiu no Senado. Foram 36 votos contra e 35 a favor, embora a base do governo tenha 37 senadores. O resultado foi uma surpresa, já que o presidente Javier Milei afirmou que a iniciativa era sua e a aprovação teria seu esforço pessoal.
Segundo a imprensa portenha, um conflito emerge nessa derrota. Unidos nas últimas presidenciais o PRO (Proposta Republicana) de Macri e o Liberdade Avança de Milei já não dividem o mesmo alfajor. Motivo: as eleições legislativas de outubro. Os dois grupos disputavam a autoria do projeto. Por quê? Ao proibir a candidatura de políticos condenados após duas instâncias, o projeto impediria a ex-presidenta Cristina Kirchner de concorrer. Kirchner foi condenada no caso conhecido como “Vialidad”, mas ainda pode recorrer na Suprema Corte. A luta é pelo slogan “derrotei o kirchnerismo” no broche de campanha.
Após a votação, o tiroteio foi geral, com acusações mútuas. “São psicopatas de todos os lados”, disse o presidente. Ligada a Macri, a ex-deputada Elisa Carrió disse que houve um pacto entre Cristina Kirchner e o principal assessor de Javier Milei, Santiago Caputo, para que o projeto de lei não fosse aprovado. Seria uma aposta na polarização entre o kirchnerismo e mileismo para deixar o macrismo de lado.
“O pacto é obviamente entre Santiago Caputo, que tem a estratégia na Província de Buenos Aires, mas que quer uma estratégia nacional sem um acordo com o PRO, e confrontar: o governo ou Cristina, essa é a estratégia”, atacou Carrió. Parece teoria da conspiração, mas alguns articulistas e as declarações da deputada Silvia Lospennato (PRO) vêm alimentando a tese.
Nesse cenário, a mudança de partido de Patrícia Bullrich foi outra bomba. A Ministra da Segurança, que há dois anos foi candidata à Presidência pela coligação Juntos pela Mudança e era presidente do PRO, liderado por Maurício Macri, desembarcou do partido e se uniu ao Liberdade Avança de Milei. O desenlace desse movimento seria sua candidatura ao Senado em outubro. Mais: até doze deputados podem acompanhar sua saída do PRO.
Na terça-feira (13), o jornal espanhol El País publicou uma reportagem com uma denúncia de corrupção ligada ao governo. Com um orçamento de cerca de cinco bilhões de pesos anuais (US$ 4,4 bilhões), o Instituto Nacional de Serviços Sociais para Aposentados e Pensionistas (PAMI) está envolvido em uma tempestade política e judicial após várias alegações de corrupção envolvendo funcionários nomeados pela istração de Javier Milei. Em pelo menos cinco províncias argentinas, funcionários do PAMI acusaram membros do Liberdade Avança de exigir parte de seus salários para financiar atividades do partido.
Mas nem tudo são más notícias para Milei. No último domingo houve eleições legislativas em Salta, Jujuy, Chaco e São Luís e os governadores locais comemoraram os resultados. Nenhum faz oposição ao governo federal. A inflação da Cidade de Buenos Aires em abril foi de 2,3% e acumula 11,1% nos primeiros quatro meses do ano. A comparação anual mostrou um aumento de 52,4%.