Uma repórter de quase 70 anos percorre, sozinha, a Amazônia
Nascida no Rio Grande do Sul, Cristina Ávila está perto de completar 70 anos, dos quais mais de 40 dedicados à reportagem
atualizado
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Ser repórter de verdade não é uma profissão, é uma imposição que nasce do lado de dentro. Grandes repórteres são inquietos, perguntadores, desbravadores, de algum modo destemidos. Dos que conheci de perto, a mais intensa e ininterruptamente repórter é uma gaúcha criada nos pampas e que, achando pouco a amplidão da savana do sul do país, foi muito jovem morar na Amazônia.
Cristina Ávila, a repórter, está perto de completar 70 anos, dos quais mais de 40 dedicados à reportagem. Somos amigas há mais de 30 e desde então não me lembro de um dia em que ela não estivesse em estado de reportagem, pensando, apurando, escrevendo, sempre como se quisesse correr na frente do tempo. Nesse instante, Cristina está arranchada numa aldeia indígena, na Terra Indígena Cachoeira Seca, dos Arara, à margem do Rio Iriri, no Pará.
Desde que, nos anos 1980, deixou o Sul e foi parar em Rondônia, Cristina se especializou em questões indígenas. Trabalhou em jornais de Porto Velho e no Conselho Indigenista Missionário, o Cimi, braço de defesa dos povos originários dentro da Igreja Católica. E, porque uma coisa leva necessariamente à outra, Cristina se dedica também ao meio ambiente, desde muito antes de esse ser um tema-limite para a sobrevivência do homo sapiens na Terra.
Sua pauta mais recente, mais longa e trabalhosa é uma pesquisa que começou há mais de dez anos: o impacto da abertura na Transamazônica nos povos indígenas, e os Arara é um dos que mais foram solapados pela estrada aberta durante a ditadura militar.
Para reunir o material que irá compor o livro-reportagem, Cristina já viajou de ônibus, pau-de-arara, balsa, naviozinho, rabeta (pequena canoa motorizada) e de Niño, que vem a ser um Uno 2001 adaptado para ser um minúsculo motorhome, no qual cabem um colchonete, um fogãozinho, uma mesinha para trabalho e um bagageiro, esse talvez o mais importante dos órios. Nele, vão as peças de roupa femininas, em muito boa qualidade, que recebe das amigas. Encomenda que as indígenas esperam ansiosamente – correm para a beira do rio ao ouvir o po-po-po-pó da rabeta.
Veja imagens:
Nas quatro viagens que já fez a Altamira e agora à aldeia dos Arara, Cristina comeu carne de macaco, tripa de tartaruga, tracajá e todo tipo de peixe, refeição frugal dos indígenas, que, na falta de mais vasilhas, às vezes comem em prato coletivo, acocorados no chão, cada um com sua colher. Embora esteja na aldeia por autorização do cacique, não é fácil estabelecer uma conversa com a gente indígena que não tem muito contato com a gente não-indígena. Meio desconfiados, na deles, não dão muito espaço para conversê.
Coisas positivamente inesperadas acontecem: entrevistando Akitu Arara e, em dúvida sobre como escrever o nome, Cristina pediu a ele a carteira de identidade. No verso, estava grudada uma foto. Era de um dos mais importantes sertanistas brasileiros, Sidney Possuelo, levando pela mão um garoto indígena quase adolescente, nos anos 1970 – o próprio Akitu no primeiro contato com o homem branco. Cristina fez a foto da foto, mandou imprimir no papel e deu de presente a um emocionado Possuelo, que mora em Brasília.
O making of do livro-reportagem de Cristina Ávila daria, por si só, outro livro. Tenho tido a honra de acompanhar, de longe, essa corajosa incursão a um micropedaço da história recente dos povos originários da Amazônia e de como eles têm resistido há mais de 500 anos de tentativas de extermínio.
Darcy Ribeiro vivia repetindo esse assombro: como eles conseguiram? “É quase incrível, mas ela [uma comunidade étnica] resiste a qualquer condição inimaginável de repressão e de perseguição, se não há uma destruição física ou um desgarramento e total isolamento de seus membros”. Mesmo isolados, muitos ainda resistem. Cristina Ávila também.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.