O que dizem os laranjas de grileiros em fraude de documentos no Incra
Investigação da PF contra grilagem no Pará aponta para o uso de “laranjas inconscientes” para fraudar documentos no órgão
atualizado
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Uma investigação da Polícia Federal (PF) que tem como alvo uma organização criminosa de grilagem de terras públicas no Pará mostrou que os integrantes do esquema usavam supostos “laranjas inconscientes”.
O grupo usava informações para fraudar processo no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em nome desses “laranjas”, sem consentimento ou sequer conhecimento de que os dados estavam sendo usados.
A PF identificou pelo menos 17 vítimas, que seriam esses “laranjas inconscientes”, e a coluna entrou em contato elas. Três responderam aos contatos da reportagem.
O trio negou ter conhecimento sobre qualquer propriedade em seus nomes e negam conhecer os investigados na operação. Dois dos entrevistados também afirmaram viver em Santarém (PB), a mais de 500Km do local das propriedades, em tese, legalizadas em seus nomes.
Um dos laranjas que atendeu a coluna é um homem de 43 anos que seria “dono” de uma terra de 300 hectares. Quando questionado sobre a suposta posse do terreno, ele chegou a ironizar sua condição financeira. “Não tenho nem rede [para deitar], como é que vou ter terra?”, questionou à coluna, rindo.
A terra em seu nome está localizada em Gleba Belo Monte, no Pará. Quando a informação foi citada, ele disse que “não sabe nem o que é isso” e negou ter sido contatado alguma vez para falar sobre o terreno.
Após ser questionado sobre onde ele morava, o homem encerrou a chamada imaginando se tratar de um golpe, e disse que tinha “mais o que fazer”.
A coluna também falou com o irmão de um dos supostos laranjas, que seria um homem de 85 anos aposentado pelo Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), ganhando cerca de R$ 2 mil por mês.
“Meu irmão não trabalha, é aposentado do INSS. Não sabe nem o que é propriedade rural […] Isso não tem nada a ver conosco. Não tem a mínima possibilidade. Zero”, afirmou.
De acordo com a relação de matrícula obtida pela PF, o idoso seria o proprietário original de um terreno de 84 hectares, denominado de Sítio Campo Novo, em Gleba Belo Monte, no município de Senador José Porfírio.
Contudo, quando a localidade da propriedade foi citada, o irmão do suposto laranja afirmou que vive em Santarém, cidade a quase 600 km de Senador José Porfírio. Ele também nega conhecer outros investigados.
“Vai fazer 86 anos, tá velhinho […] Não existe isso, ninguém vende nada. Isso aí não tem a mínima possibilidade, sei nem o que é isso”, disse.
A coluna também foi atendida pelo filho de uma mulher que teria sido usada como laranja no esquema. Segundo a PF, ela seria a proprietária original de uma terra de cerca de 100 hectares, também em Gleba Belo Monte.
Ele também afirma que mora em Santarém, e vive ao lado da mãe. “Eu sou CLT, minha mãe é aposentada, nunca nem saiu daqui […] Sei nem onde diabos fica isso [a cidade do Senador José Porfírio]”, disse.
Ele também questionou a coluna sobre como eles teriam “caído nessa situação”, uma vez que nunca teria saído de onde moravam. “Com certeza isso é fake news. Isso é mentira”, disse.
Da mesma forma que os outros contatados, ele nega que a mãe seja dona da terra, nem conhece outros investigados no caso. “Minha mãe tem uma casinha aqui que meu pai deixou de herança”, afirmou. Questionado sobre a suposta venda da propriedade, ele riu: “Mas como?”.
Durante as investigações, ao se deparar com as suspeitas de que os grileiros utilizavam os laranjas, a PF também entrou em contato com as vítimas, que deram respostas similares aos agentes, negando possuir terras.
Com isso, para a PF, ficou “comprovado que essas pessoas, de fato, não tinham conhecimento de que seus nomes haviam sido usados no esquema criminoso”.
“Esse início do esquema não só estabelece as fundações para as fraudes subsequentes, mas também destaca a audácia e a complexidade da operação. Manipulando elementos do sistema de registro e documentação do Incra, os grileiros conseguem criar uma aura de legalidade em torno de terras públicas usurpadas, preparando o terreno para as etapas seguintes do esquema”, afirma a PF.
O esquema
Para além das fraudes em processos no Incra, a PF identificou outras cinco fases de execução do esquema, que incluía a inserção de dados falsos no Cadastro do Imóvel Rural, a lavratura de escritura pública de compra e venda com posterior registro em cartório e transferência da matrícula.
Por fim, o grupo chegava à etapa de lucratividade com as terras griladas, o que era obtido, como mostrou a coluna, por meio da venda das terras ou a obtenção de vultuosos créditos rurais hipotecando os próprios imóveis adquiridos de forma ilegal.
A fraude dos processos, segundo a PF, seria apenas o início do esquema, que tinha por objetivo “criar uma aura de legalidade em torno de terras públicas usurpadas, preparando o terreno para as etapas seguintes do esquema”.
Veja abaixo o o a o da organização criminosa, segundo a PF:
Operação Imperium Fictum
A investigação teve início em 2023 pela Polícia Federal em Altamira (PA). Segundo a corporação, o grupo atuava em uma rede criminosa organizada e com um modo de atuação “meticuloso”. Foram reveladas, por exemplo, “fraudes estruturadas” em cartórios de registro de imóveis.
Foi identificado o uso de documentos falsificados, registros baseados em títulos forjados e a atuação de agentes públicos e privados no esquema, que atuariam na “confecção de escrituras públicas falsas, a inserção de dados fraudulentos em sistemas cadastrais oficiais e a posterior comercialização de imóveis grilados”.
O esquema incluía ainda falsificação de processos no Incra, simulação de transações imobiliárias, registros indevidos em cartórios e obtenção de financiamentos rurais com garantias baseadas em propriedades griladas.
A partir das apurações, foi deflagrada em 21 de maio a primeira fase da Imperium Fictum, que mobilizou centenas de agentes e resultou no cumprimento de 39 mandados de busca e apreensão e 9 mandados de prisão preventiva, expedidos pela 4ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária do Estado do Pará.
Os mandados foram cumpridos no Pará e em outros sete estados, além do Distrito Federal. Como mostrou a coluna, além das prisões e buscas, a Justiça também determinou o sequestro e bloqueio de R$ 608 milhões dos investigados.