“Classe média do empreendedor” é novo desafio do país, diz economista
Grupo representa 60% da população e tem impacto diferente no consumo. Isso além de novas aspirações. Valoriza a educação, mas não a formal
atualizado
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Há novidades nas camadas intermediárias dos estratos sociais do Brasil. Ali, uma nova classe média está em formação, segundo a análise do economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social), no Rio.
Como todo segmento social, esse grupo tem traços comuns – comportamentos, opiniões e status socioeconômico. Agora, uma dessas novas características é o empreendedorismo. Outra é que esse grupo está à margem das políticas públicas. A seguir, Neri, um dos maiores especialistas em desigualdade do país, explica em entrevista ao Metrópoles quem são essas pessoas e o que poce ser feito para fortalecê-las.
Qual é a faixa de renda dessa nova classe média do Brasil?
Temos nossa classificação na FGV, mas, no debate cotidiano das pesquisas de opinião, o que se define como a nova classe média brasileira é a camada cuja renda mensal fica entre dois e cinco salários mínimos (entre R$ 3,036 mil e R$ 7,590 mil). Acima de cinco, teríamos a classe média tradicional, ou classe AB.
E qual é o estrato dessa nova classe média?
A nova classe média é a classe C, que representa cerca de 58% da população. As pessoas que fazem parte desse grupo não têm a ver com a classe média que a gente se acostumou a ver nos filmes americanos, com dois carros na garagem, dois cachorros.
Como se formou essa nova classe média?
Tivemos uma elevação da renda das pessoas, que foi maior do que o avanço do Produto Interno Bruto (PIB) com boom de commodities. Isso ocorreu entre 2003 até 2014 quando a classe ABC, ou classe média, no sentido amplo, chegou ao pico de 72,1%. A partir daí, com a crise econômica, esse processo ou por uma reversão. Agora, temos um novo momento de crescimento de renda acima do PIB, também turbinado. Com isso, a classe ABC subiu de 69,5% em 2022 para 76,4% em 2024.
De quanto foi o crescimento da renda desse segmento população?
Foi três vezes maior do que o crescimento do PIB. Se considerarmos os 10% mais pobres, ele chegou a ser cinco vezes maior do que o aumento do produto. Boa parte dessas pessoas ascendeu à classe média.
E quais são as aspirações dessa nova classe média?
A carteira de trabalho assinada sempre foi o grande símbolo da nova classe média. E entre o começo de 2023 e setembro de 2024, nesse um ano e nove meses, 3,6 milhões entraram no mercado formal de empregos e 90% dessas pessoas estavam no CadÚnico (o cadastro com famílias de baixa renda). Mas, agora, essa aspiração relacionada à CLT, ao trabalho formal, se diversificou.
Diversificou-se em qual aspecto?
Agora, existe uma relação forte desse novo grupo que ou a fazer parte da classe média com o empreendedorismo. E não se trata do empreendedorismo tradicional. As pessoas muitas vezes têm um ativo com o qual podem ganhar dinheiro e estão fazendo isso. Esse é o caso de quem tem uma moto para fazer entregas, ou mesmo, uma bicicleta. Além disso, essas pessoas podem trabalhar como motoristas de aplicativo, ou vender via comércio eletrônico, por exemplo. Essa foi uma alteração importante e está relacionada com a nova classe média.
Qual é a consequência dessa mudança?
O grande desafio será entender esse lado empreendedor da nova classe média. Hoje, as políticas públicas estão muito voltadas para pessoas que estão no CadÚnico ou no Bolsa Família, que aumentou tanto em termos de benefício como em número de beneficiários. Só em 2023, a renda do brasileiro que está no Bolsa Família cresceu 44% na comparação com 2022. As pessoas que estão no mercado de trabalho formal têm outro foco. Há ainda regras de reajuste do salário mínimo acima da inflação. Nada disso acontece com esse empreendedor da nova classe média.
Ele fica à margem dessas políticas.
Esse é o grande desafio, é a bola da vez. É preciso ter políticas públicas não apenas para os mais pobres e para os formais, ou mesmo, para que os mais pobres virarem formais, como nas chamadas regras de proteção do Bolsa Família que incentiva este movimento.
E o que pode ser feito?
Os projetos ligados ao microcrédito e a programas de qualificação do recém-lançado programa Acredita são importantes. Outro projeto como o anunciado pelo governo de isenção de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil e de redução para quem recebe até R$ 7 mil também pode se encaixar nesse contexto. Mas essa discussão ainda está nos seus primórdios.
A ascensão dessa nova classe média tem impacto relevante em áreas como o consumo?
Tem, mas ele é menor do que o dos programas que atingem a população de renda mais baixa. Para cada real que você gasta com o Bolsa Família, isso gera um impacto de R$ 1,78 no PIB. No caso desse pessoal da nova classe média, com uma liberação do FGTS, o efeito multiplicador é 0,39 no PIB.
E o impacto em termos políticos?
Existe um paradoxo. A renda real do trabalho está crescendo no Brasil. Nesse grupo do meio, nessa nova classe média, ela avançou 8,7% em 2024, o que é uma elevação substantiva. Na média, esse salto foi de 7,1%. No entanto, as pessoas não estão satisfeitas. Claro que existem outros fatores nesse quadro, como o aumento do preço dos alimentos. Mas o paradoxo existe, pois há ganhos não desprezíveis.
E qual é explicação para esse paradoxo?
Isso já aconteceu antes. Em 2013, a economia estava aquecida e vimos uma queda da popularidade da presidente Dilma Rousseff. Isso porque tínhamos alguns sinais de instabilidade na economia, além de uma certa visão pessimista do mercado. Hoje, acho que pode haver uma maior preocupação com a sustentabilidade do crescimento. O fato é que, atualmente, as pessoas estão ocupadas com trabalho e nem sempre estão felizes. Elas estão trabalhando, e isso é melhor do que estar desempregado, mas parece que as aspirações aumentaram. A comida é um ponto, uma necessidade básica, mas, com essas mudanças digitais, incorporamos novos hábitos. Queremos outras coisas como banda larga para internet, um serviço de streaming e por aí vai.
Mudaram as aspirações em torno de coisas como a educação ou o diploma universitário, por exemplo?
Essas coisas continuam sendo valorizadas, mas não necessariamente numa visão “bacharelesca”, como prevalecia no ado. Agora, ela está mais ligada à formação para a vida, como assistência para desenvolver o negócio, a assessoria de crédito e coisas desse tipo.
É mais pragmática?
Sim. A lógica é a seguinte: eu tenho um negócio, tenho um problema, como posso endereçá-lo? E o Estado tem um papel importante nesse cenário. O primeiro é de não atrapalhar esse grupo, para, depois, se der, apoiá-lo.