Juristas reagem a projeto de Derrite que empodera PM: “Absurdo”
Especialistas consideram projeto da SSP inconstitucional. Medidas preveem que PM de SP leve foragidos a presídios sem audiência de custódia
atualizado
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O projeto-piloto da Secretaria da Segurança Pública (SSP) que ou a vigorar nesta quarta-feira (4/6), aumentando o poder de atuação da Polícia Militar na área do centro da capital paulista, foi criticado por especialistas em direito criminal e policiais ouvidos pela reportagem.
Como revelado pelo Metrópoles, as medidas autorizadas pelo secretário de Segurança Pública, o capitão da reserva Guilherme Derrite, preveem que a PM possa prender foragidos e levá-los diretamente a presídios, sem submetê-los a audiência de custódia e sem a formalização da captura na Polícia Civil. O “teste” será realizado pelos próximos 15 dias.
A determinação vai contra entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que definiu, em acórdão publicado em maio de 2023, que a audiência de custódia é um procedimento obrigatório em todos os tipos de prisão.
Todos os especialistas ouvidos foram unânimes em considerar a iniciativa inconstitucional, além de extrapolar as competências da Polícia Civil, agravando ainda mais a crise institucional entre as corporações.
Para Pedro Serrano, professor de direito constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a medida viola a Constituição Federal, na medida em que contraria os parágrafos 4º e 5º do artigo 144.
Segundo ele, tais parágrafos determinam “caber às Polícias Civis o papel de polícia Judiciária, e às PMs o papel de polícia ostensiva de preservação da ordem”. “Neste caso [do projeto-piloto], a PM aria a invadir a esfera da competência da Polícia Civil”, avaliou Serrano.
Também professor da PUC-SP e do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), Conrado Gontijo classificou como “absurda” a ideia de foragidos capturados serem levados diretamente às cadeias “sem ar por audiência de custódia”, como preconiza o projeto da SSP.
“Fere direitos fundamentais e determinações claras do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Porém, não causa surpresa, tendo em vista o histórico de arbitrariedades que tem marcado a atuação da PM no Estado de São Paulo nos últimos anos”, disse. “Caberá ao Poder Judiciário, uma vez provocado, declarar a ilegalidade dessa medida e garantir a todos os presos a realização da audiência de custódia.”
Questionado sobre a medida, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) afirmou que “não se manifesta sobre trâmites da PM”. “As manifestações do TJSP são estritamente jurisdicionais, nos casos concretos em trâmite no Poder Judiciário”, diz trecho de nota.
Enfraquecimento da Polícia Civil
Professor da Fundação Getúlio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rafael Alcadipani considerou uma questão “muito séria” o fato de a SSP tirar e diminuir atribuições da Polícia Civil.
“Acho que isso já está em curso há algum tempo e essas coisas vão e voltam. Parece que há um interesse, claro, de retirar atribuições da Polícia Civil e a gente vê, infelizmente, que a gestão da Polícia Civil não está também se colocando da forma que deveria para ir contra essa retirada de atribuições.”
Alcadipani lembrou que existe um ordenamento jurídico e procedimentos que devem ser seguidos. “Isso aí que está sendo feito [projeto-piloto], ao que tudo indica, ocorre ao arrepio das questões legais. O que a gente percebe é que existe um interesse em não preservar o poder da Polícia Civil.”
Racha institucional
Mário Palumbo Júnior, delegado licenciado da Polícia Civil e deputado federal pelo MDB, reforçou o coro ao afirmar que a medida de Guilherme Derrite é inconstitucional, “fora dos parâmetros legais”.
“A Polícia Militar tem que fazer e se limitar ao patrulhamento ostensivo. Ela não tem que fazer papel de Polícia Judiciária, isso cabe à Polícia Civil e à Polícia Federal. É o que preconiza o artigo 144 da Constituição Federal. Mas o secretário [Guilherme Derrite], até por ser policial da PM, quer sempre fazer com que a PM cresça cada vez mais, usurpando as funções da Polícia Civil e rachando literalmente a Polícia Civil e a Militar.”
Palumbo acrescentou que, enquanto a SSP atribui à PM funções da Polícia Civil, a população sente na pele o aumento da criminalidade. “Ele [Derrite] é um gestor que está sempre prestigiando a Polícia Militar e se esquece da Polícia Civil. Enquanto isso, os diretores, que poderiam se insurgir contra isso, continuam batendo palma para se segurar na cadeira. Infelizmente, essa situação vai criar mais uma vez o racha [institucional]”.
Um delegado da ativa, há décadas na Polícia Civil, afirmou em sigilo perceber, no decorrer dos anos, uma expansão da PM “em todas as frentes possíveis”. Esse movimento, segundo ele, relega à Polícia Civil “um papel secundário”, resultando “em prejuízos os mais variados para a sociedade”.
“PM não pode legislar”, diz sindicato
Para Jacqueline Valadares, presidente do Sindicato dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (Sindpesp), a determinação da SSP “pode configurar mais um flagrante desvio de finalidade e usurpação de atribuição da Polícia Civil paulista, que, não de hoje, se vê em meio à tentativa de enfraquecimento de suas funções”.
“Para a segurança pública funcionar bem, é preciso que todas as suas forças trabalhem em sintonia. É preciso, desta forma, que haja colaboração mútua, para que cada instituição faça sua parte neste sistema, de maneira eficaz — sem a usurpação de função e infrigindo regras de competência”, afirmou Jacqueline.
A presidente do sindicato disse, ainda, que cabe ao delegado de polícia cumprir mandados de prisão expedidos pelas autoridades judiciárias. “A PM não pode legislar. O Sindpesp defende que nenhum mandado de prisão seja cumprido sem que haja conhecimento e deliberação do delegado de polícia, sob pena de ilegalidade.”
Empoderamento da PM
Não é a primeira vez que o atual governo recorre a expedientes que privilegiam o trabalho da Polícia Militar. Há um ano, o Metrópoles divulgou, em primeira mão, um conjunto de ações de empoderamento da PM promovido pela gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos).
As medidas anunciadas na época, previstas em uma ordem preparatória, permitiam que militares exercessem atividades de investigação e produzissem o chamado termo circunstanciado da PM, o que provocou forte e imediata reação da Polícia Civil.
A enorme repercussão da iniciativa fez com que o governo recuasse da mudança e anunciasse, em abril do ano ado, a criação de um grupo de trabalho, como forma de apaziguar a crise entre as polícias. Os trabalhos foram prorrogados até que, em setembro, foram concluídos, segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP). Os resultados, contudo, nunca foram divulgados.
O que diz a SSP
A SSP afirmou, em nota enviada ao Metrópoles, que a “iniciativa” resultou de “um processo técnico e colaborativo construído ao logo da atual gestão entre as instituições [policiais]”. Nos próximos 15 dias, acrescentou, a região central da capital paulista será usada como área para testar “um fluxo operacional inédito”.
- Segundo a SSP, a iniciativa “automatiza o envio de informações sobre criminosos presos” além de permitir que procurados da Justiça, com mandado de prisão vigente, sejam encaminhados diretamente para a cadeia, “desde que não haja outras ocorrências associadas”.
- O argumento para a implementação do projeto é o de que ele agilizará procedimentos, não especificados, e otimizará recursos e reforçará a integração entre as polícias, “permitindo o rápido retorno dos policiais militares ao patrulhamento e dos policiais civis às investigações”.
- Presos em flagrante, ou em cumprimento de mandados de prisão temporária serão, segundo a SSP, encaminhados à Polícia Civil.
- A pasta chefiada pelo PM da reserva Guilherme Derrite disse ainda que, ao término dos 15 dias de teste, vai avaliar os resultados por meio do Centro Integrado de Comando e Controle.
- Com isso, será analisada a “viabilidade operacional do modelo”, com a proposição de ajustes, ou ainda a ampliação dele.